Memórias compartilhadas e o direito à cidade

Shared Memories and the Right to the City

Abstract: This article has as a starting point a commentary made in the 1990s by sociologist Maria Célia Paoli regarding the relevance of promoting participatory practices for the construction of urban memory. Then, it presents two recent contexts in which these practices take place, due to the desire of individuals and communities to document their own histories: the memory collectives of the periphery of São Paulo, and popular photographers of Rio de Janeiro.
DOI: dx.doi.org/10.1515/phw-2022-20736
Languages: Portuguese, English


O direito à cidade e a cidadania estão associados a tomada de posse da história urbana. É possível uma prática historiadora pública e inclusiva para a conquista desse direito? A história oral, a fotografia, a literatura e a documentação popular ajudam a responder a esses desafios.

Uma pequena nota

Um documento encontrado no arquivo pessoal de uma socióloga brasileira é um bom mote para as reflexões deste ensaio. Trata-se de um breve escrito localizado pela pesquisadora Joana Barros nos papéis deixados por Maria Célia Paoli (1945-2019), socióloga de forte vocação pública e interdisciplinar, dedicada a pensar o trabalho, a vida urbana, os movimentos sociais, a narrativa. Levantado em um projeto que é, ele mesmo, uma ação de história pública[1] – a criação de um acervo físico e digital que publicizará o legado de Paoli –, o escrito é uma pequena nota preparada em 1990, preparada para uma revista de divulgação histórica, mas que não consta do currículo de Paoli.[2]

Em duas páginas e meia, a socióloga expõe o trabalho de história oral que vinha desenvolvendo como parte de suas incumbências no cargo público que ocupava. Professora da Universidade de São Paulo, ela integrava a gestão municipal progressista da prefeita Luiza Erundina – mais precisamente, o Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura, que criou um programa inovador de enraizamento de práticas de história oral e educação patrimonial na prefeitura (abandonado pela gestão seguinte, conservadora e fortemente à direita).

Em uma escrita viva, Paoli conta sobre a recolha de testemunhos de velhos operários aposentados, de ativistas da saúde, de habitantes comuns da cidade dispostos a discorrer sobre seu cotidiano. “Trata-se de preencher os terrenos vazios da historiografia da cidade”, ela escreve, mas também “de criar, através da palavra de quem rememora, uma relação positiva das pessoas com este gesto de resgate do passado e do presente da cidade que viveram”.[3]

Em sua reflexão, Paoli valoriza tanto o benefício do trabalho de pesquisa sobre os narradores quanto as fricções criadas nos próprios pesquisadores. Estes seriam forçados a repensar as relações que estabelecem com seus temas e seus sujeitos, a natureza dos dados com que trabalham (no caso, fontes resultantes de trabalho de memória), e, sobretudo, seu comprometimento com práticas de documentação e reflexão capazes de “produzir condições para que as pessoas se envolvam coletiva e publicamente com seu passado”.

Uma memória urbana tensiva e não planificada

Marcado por problemáticas e formulações conceituais próprias de sua época (veja-se, por exemplo, que há muito deixamos de falar em “resgate” do passado, sendo ele impossível: o que existe é construção, no presente), o texto de Paoli é, ele mesmo, um testemunho e um chamado para a criação de um espaço comum, no qual a cidadania seja construída no compartilhamento de saberes.

Evoca-se um exercício no qual os sujeitos sociais – impulsionados por um dever de memória, como queria Pierre Nora, tomam o passado como fonte de orientação, como queria por sua vez Carl Becker – encontram-se para formular a partir da diferença, assumida e superada, uma memória urbana múltipla, democrática, heterogênea. Uma memória urbana tensiva e não planificada; colocada a serviço não do desenvolvimento imobiliário e da exploração comercial turística do passado, mas do fortalecimento do respeito e da solidariedade nas negociações entre grupos e identidades; que alicerce a reconstrução e a revitalização da própria vida urbana e das relações humanas, de coexistência, em seu interior.

A memória urbana em coletivos

A disposição de construir leituras compartilhadas e múltiplas do passado, que pulsa no texto de Paoli – produzido no contexto de pós-redemocratização no Brasil, quando a demanda pública por memória, ela mesma, pulsava – parece ter uma conexão direta com as ações desenvolvidas por coletivos de memória urbana autônomos, autogeridos e pouco afeitos a formas tradicionais de institucionalidade que nas últimas duas décadas assumem a vida na cidade como seu tema, seu mote e seu espaço de realização.

Nas periferias da Zona Leste de São Paulo – região repleta de desigualdade e pobreza, tradicionalmente esquecida pelo poder público – a sede por educação e cultura e a defesa pelo direito à memória têm movido, nos últimos dez anos, muitos jovens criativos. Geralmente egressos de cursos superiores nas áreas das humanidades e ciências sociais aplicadas (na maior parte dos casos, compondo a primeira geração de suas famílias a ter acesso à universidade), eles tomam seu próprio contexto de origem como objeto de indagação.


Fig. 1: O Grupo Ururay em um de seus tours sobre os patrimônios esquecidos da Zona Leste de São Paulo.

O Grupo Ururay pergunta-se o porquê de os bairros populares terem sido tradicionalmente excluídos de políticas públicas de preservação – e propõe formas alternativas de conhecer o patrimônio cultural das periferias, com vídeos, publicações e tours.[4]

O Centro de Documentação e Pesquisa Histórica Guaianás combate a supressão das expressões culturais e memoriais de trabalhadoras e trabalhadores da história urbana oficial, produzindo acervos de história oral, webdocumentários e intervenções urbanas.[5] O coletivo ZL100Registro mapeou e documentou a ação de 100 agentes culturais – em exposição, livro e bate-papos públicos – para desafiar as representações da região como um território carente de vida cultural e criativa.[6]

E há outros eixos e marcadores que motivam cruzamentos com a problemática urbana mais geral. O Coletivo Memória & Resistência, por exemplo, privilegia as vivências sexo-dissidentes em suas exposições fotográficas e produções audiovisuais. Um projeto de depoimentos com sujeitos LGBTQIA+ da periferia de São Paulo, por exemplo, coloca em questão o centro da cidade e alguns de seus bairros nobres como os únicos territórios em que essa comunidade desenvolveu formas de sociabilidade específicas.[7]

Energética, descentralizada, e comprometida com a transformação do presente a partir da leitura crítica dos processos históricos, essa cena de produção de memória – instigada pela inconformidade com a desigualdade urbana e suas implicações econômicas, políticas e culturais – encontra equivalentes em outros territórios de segregação.

A força da fotografia popular na cidade

No Rio de Janeiro, o forte movimento de coletivos de fotografia e fotógrafos populares – ampliando o lugar social da fotografia popular, tradicionalmente orientada pelos registros familiares ou da produção de fotógrafos ambulantes, por exemplo – dá a ver uma outra modalidade da fotografia como aparição de história pública.

Aqui, a prática fotográfica desenvolvida por fotógrafas e fotógrafos oriundos de periferias, é uma forma de assumir uma atitude historiadora diante do seu tempo e, assim, historiar a vida da sua comunidade. A imagem do Rio de Janeiro tensionada entre o cartão-postal e as páginas policiais dos jornais, encontra na fotografia popular cidade o olhar ao rés do chão do cotidiano das periferias.

Comentando o trabalho de um desses fotógrafos – o jovem Léo Lima –, Luiz Baltar, ele próprio um fotógrafo popular, escreveu que, nos dias de hoje, “Não dá para pensar em fotografia popular, sem falar de alguns fotógrafos que atuam em periferias e produzem documentações necessárias para a democratização das narrativas visuais que se constroem do Rio de Janeiro”.[8]

Lima, oriundo da favela do Jacarezinho, faz de sua fotografia não uma janela voltada à mera visualização, mas uma porta de acesso à vida social, documentando brincadeiras infantis, práticas religiosas, festas de aniversário, elaborações criativas de espaços, objetos de consumo, eventos sociais, datas comemorativas. Léo Lima, o “Léo que tira foto”, define-se hoje como um autor de “fotoescrevivências” – aludindo assim ao conceito de “escrevivência” da escritora Conceição Evaristo, elaborando-se como o enunciador da história de um eu coletivo, voltada a denunciar, provocar e transformar.

Na mesma trilha a fotógrafa Thais Alvarenga, moradora de Vila Kennedy, Zona Oeste, vem documentando progressivamente a sua região e seu bairro. Thais encontrou no Instagram uma possibilidade de publicar o seu trabalho e a Zona Oeste de seu dia a dia, reorientando os usos e funções do espaço público virtual.[9]


Fig. 2: Fotografia “Sobrado em Santa Teresa”, de Augusto Araújo, produzida no projeto Mão na Lata.

Os exemplos se multiplicam, mas é impossível deixar de registrar a experiência do coletivo “Mão na Lata”, na favela da Maré (um dos maiores complexo de favelas cidade), resultado de uma parceria entre a fotógrafa Tatiana Altberg e da OSCIP[10] Redes de Desenvolvimento da Maré. O projeto iniciou-se em 2003, com oficinas de fotografia artesanal pinhole, para estudantes do ensino básico em duas escolas pública da Maré.

Como utilizavam-se de câmeras artesanais feitas de latas, o nome do projeto foi escolhido pelos próprios alunos para a exposição realizada em um ano de oficinas. Entre os temas trabalhados estão a relação entre literatura, cidade e fotografia, apoiado nos contos de Machado de Assis que se passavam nos morros cariocas. Uma nova história visual da cidade ganhou vida.[11]

História pública como um espaço comum

Narradores envolvidos em projetos de história oral, coletivos de memória, fotógrafos populares, escritores são alguns dos sujeitos sociais que confirmam a história pública como um espaço comum, em que princípios, valores e agendas são comungados.

Partes integrantes dessa comunhão são a efetivação do direito à memória e a defesa da história tanto como um elemento cuja apropriação é condição para o exercício da cidadania quanto como uma prática que, seja em sua dimensão processual, política ou epistemológica, se potencializa quando é, ela mesma, uma construção democrática.

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Leitura adicional

  • Mauad, Ana Maria, Juniele Rabêlo de Almeida, and Ricardo Santhiago, eds. História Pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
  • Mauad, Ana Maria. Imagens em fuga: considerações sobre espaço público visual no tempo presente. Tempo e Argumento23 (2018): 252-285.
  • Santhiago, Ricardo, and Barros, Joana. Vontades conflitantes de memória: história oral, demanda social e construção de acervos In: Marta Rovai, and Ricardo Santhiago, eds. História oral como experiência: Reflexões metodológicas a partir de práticas de pesquisa. Teresina: Cancioneiro, 2021, v.1, p. 215-232.

Recursos da web

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[1] Trata-se do projeto “Em busca da política: Maria Célia Paoli”, coordenado por Joana Barros junto ao Centro de Memória Urbana (CMUrb) da Universidade Federal de São Paulo. Ancorado nos fundamentos teóricos da história pública, volta-se à constituição de um acervo documental em torno da produção intelectual de Paoli, à luz de suas contribuições para o pensamento social brasileiro.
[2] Trata-se da revista Memória, publicada pela Eletropaulo, a companhia de energia do Estado de São Paulo, que àquela altura desenvolvia um forte trabalho de pesquisa e divulgação de seu acervo documental.
[3] Documento sem título, c. abril 1990, 3 fl. Agradecemos a Joana Barros o compartilhamento do texto, ainda em processo de tratamento.
[4] Grupo Ururay, http://ururaypatrimoniocultural.blogspot.com/.
[5] CPDOC Guianás, https://cpdocguaianas.com.br/.
[6] ZL100Registro, https://www.instagram.com/zl100registro/.
[7] Coletivo Memória & Resistência, https://coletivomr.wixsite.com/memoriaeresistencia.
[8] Baltar, Luiz. “Léo que tira foto e os caçadores de pipa”. Ateliê Oriente, 14 ago. 2018, https://www.atelieoriente.com/blog/leolima.
[9] Thais Alvarenga, https://instagram.com/thaisalvarengaaa.
[10] OSCIP é uma sigla de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, estatuto jurídico para organizações civis que realizam ações sociais por meio da captação de recursos do Estado e da iniciativa privada.
[11] Mão na Lata, http://www.maonalata.com.br/.

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Créditos da imagem

Imagem do título: © Leo Lima, um fotógrafo popular do Rio de Janeiro.
Fig. 1: © Grupo Ururay, A herança esquecida da Zona Leste de São Paulo.
Fig. 2: © Augusto Araújo, Projecto Mão na Lata, “Sobrado em Santa Teresa”.

Citação recomendada

Mauad de Sousa Andrade Essus, Ana Maria, Ricardo Santhiago: Memórias compartilhadas e o direito à cidade. In: Public History Weekly 10 (2022) 8, DOI: dx.doi.org/10.1515/phw-2022-20736.

Responsabilidade editorial

Michel Kobelinski / Juniele Rabêlo de Almeida

Copyright © 2022 by De Gruyter Oldenbourg and the author, all rights reserved. This work may be copied and redistributed for non-commercial, educational purposes, if permission is granted by the author and usage right holders. For permission please contact the editor-in-chief (see here). All articles are reliably referenced via a DOI, which includes all comments that are considered an integral part of the publication.

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Categories: 10 (2022) 8
DOI: dx.doi.org/10.1515/phw-2022-20736

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  1. Portuguese version below. To all readers we recommend the automatic DeepL-Translator for 27 languages. Just copy and paste.

    OPEN PEER REVIEW

    Urban Memories and the Public Debate

    Cities are told and retold based on the people who live in them, placing the right to memory and citizenship associated with taking possession of urban history. The text presents reflections developed in the 1990s, by the sociologist Maria Célia Paoli, regarding the relevance of promoting participatory practices for the construction of urban memory. Then, it presents two recent situations in which these practices are effective: the memory collectives of the periphery of São Paulo and the popular photographers of Rio de Janeiro.

    The text carefully written from a brief writing located by the researcher Joana Barros in the papers left by Maria Célia Paoli (1945-2019), a sociologist dedicated to thinking about urban life, problematizes a project that is, in itself, an action of public history. . The sociologist exposes the oral history work that she had been developing as part of her duties in the public office she held in the city of São Paulo, creating an innovative program to take root in oral history and heritage education practices in the city.

    The two situations of the present time presented in the text, allow us to know and recognize the ways in which residents of Brazilian cities live, remember and tell the place where they lived, grew up, created affective bonds, presenting a look at the ground floor of everyday life. from the peripheries. Also shared are the cries of social subjects for the right to memory, for the right to be and to exercise citizenship, as well as artistic expressions, through popular photography and memory collectives, which denounce urban social problems.               The results presented in the text transport us to different places presented by those who know them best: their inhabitants. Oral history was the path taken by Paoli, who tells about the collection of testimonies from old retired workers, health activists, common inhabitants of the city willing to talk about their daily lives, creating a common space, in which citizenship is built. in sharing knowledge.The urban memory collectives of the periphery of São Paulo and the popular photographers of Rio de Janeiro present us in a decentralized and autonomous way, the commitment to the transformation of the present from the critical reading of historical processes. Thus, the text brings its contribution both by documenting various memories, and by listening to the different voices, struggles and demands of residents for a public debate and a production of multiple, democratic and heterogeneous urban memory.

    __________

    Memórias urbanas e o debate públic

    As cidades são contadas e recontadas a partir das pessoas que nelas vivem, situando-se o direito à memória e a cidadania associados a tomada de posse da história urbana. O texto apresenta reflexões desenvolvidas nos anos 1990, pela socióloga Maria Célia Paoli, a respeito da relevância da promoção de práticas participativas de construção da memória urbana. Em seguida, apresenta duas situações recentes nas quais essas práticas se efetivam: os coletivos de memória da periferia de São Paulo e os fotógrafos populares do Rio de Janeiro.

    O texto cuidadosamente redigido a partir de um breve escrito localizado pela pesquisadora Joana Barros nos papéis deixados por Maria Célia Paoli (1945-2019), socióloga dedicada a pensar a vida urbana, problematiza um projeto que é, ele mesmo, uma ação de história pública. A socióloga expõe o trabalho de história oral que vinha desenvolvendo como parte de suas incumbências no cargo público que ocupava na prefeitura de São Paulo, criando um programa inovador de enraizamento de práticas de história oral e educação patrimonial na cidade.

    As duas situações do tempo presente apresentadas no texto, nos permitem conhecer e reconhecer os modos como moradores e moradoras de cidades brasileiras vivem, rememoram e contam o lugar em que viveram, cresceram, criaram vínculos afetivos, apresentando um olhar ao rés do chão do cotidiano das periferias. Também são compartilhados os gritos de sujeitos sociais pelo direito à memória, pelo direito de ser e de exercer a cidadania, bem como as expressões artísticas, através da fotografia popular e de coletivos de memória, que denunciam os problemas sociais urbanos.

    Os resultados apresentados no texto nos transportam para diversos lugares apresentados por quem melhor os conhece: seus habitantes. A história oral foi o caminho percorrido por Paoli, que conta sobre a recolha de testemunhos de velhos operários aposentados, de ativistas da saúde, de habitantes comuns da cidade dispostos a discorrer sobre seu cotidiano, criando um espaço comum, no qual a cidadania é construída no compartilhamento de saberes.

    Os coletivos de memória urbana da periferia de São Paulo e os fotógrafos populares do Rio de Janeiro nos apresentam de maneira descentralizada e autonoma, o comprometimento com a transformação do presente a partir da leitura crítica dos processos históricos. Assim, o texto traz sua contribuição tanto por documentar várias memórias, quanto dar ouvidos às diversas vozes, às lutas e demandas dos moradores por um debate público e uma produção de memória urbana múltipla, democrática e heterogênea.

  2. To all readers we recommend the automatic DeepL-Translator for 27 languages. Just copy and paste.

    Conquistar la ciudad, construir ciudadanía

    Las ciudades son un conjunto de muchas cosas:
    memorias, deseos, signos de un lenguaje;
    son lugares de trueque, como explican todos los
    libros de historia de la economía,
    pero estos trueques no lo son sólo de mercancías,
    son también trueques de palabras,
    de deseos, de recuerdos.

    Ítalo Calvino [1]

    “Memórias compartilhadas e o direito à cidade” ofrece, al menos, dos aspectos interesantes sobre los que me gustaría detenerme en estas breves líneas: por un lado, en sintonía con las palabras de Ítalo Calvino que abren este comentario, la posibilidad de pensar a la ciudad como un “territorio” construido y habitado por distintos sujetos y colectivos, cada uno con sus memorias y horizontes de expectativas. Por otro lado, la potencia de las prácticas de Historia Pública, entre las cuales la historia oral y la fotografía tienen un lugar destacado, para construir narrativas que “rellenen los vacíos de la historiografía” y amplíen las voces desde las cuales se cuenta la historia.

    En relación con el primer punto, parafraseando a Anne Huffschmid, propongo leer a la ciudad, como un espacio de simultaneidades, es decir, como una suerte de “archivo” no ordenado y desbordado de “documentos” que con cada quiebre o sacudida –en términos de Prats con cada activación patrimonial [2]- se vuelve a remezclar y reorganizar.[3] Dicho de otro modo, el espacio urbano, por sus capas temporales, su heterogeneidad y su movimiento constante, constituye una plataforma privilegiada para la construcción de proyectos de Historia Pública, como los impulsados por los colectivos de jóvenes de la periferia de la Zona Este de São Paulo y los fotógrafos populares de Río de Janeiro mencionados en el texto. Allí, como bien señalan su autores, estos emprendedores de memoria,[4] no “rescatan” el pasado, sino que realizan una construcción identitaria desde el presente y con una proyección hacia el futuro. A través de sus prácticas buscan interpelar a otros acerca de quiénes fueron, quiénes son y, sobre todo, quiénes desean ser.

    Muchos investigadores han señalado que las memorias, para hacerse comunicables, no sólo precisan del lenguaje, sino también del espacio. Al activar la ciudad e imprimir en ella ciertas marcas y relatos, estos colectivos hablan de historias que se niegan a ser borradas o sepultadas. Dan cuenta de que las personas significamos a los espacios y que, al mismo tiempo, los espacios nos significan.

    Ahora bien, la particularidad de los casos presentados en el texto es que esta construcción narrativa se da, entre otros lenguajes expresivos, a través de la fotografía, concebida como un vehículo de memoria. Esta constituye una forma de documentar aspectos de la vida cotidiana de las comunidades que han sido relegados por los relatos y las narrativas visuales hegemónicos.

    Es sabido que las imágenes fotográficas tienen un fuerte poder de legitimación de los discursos en las sociedades occidentales, posiblemente en función de la idea de mímesis que sigue teniendo peso en el sentido común y que le asigna un valor de verdad a lo que éstas presentan. Por eso, compartir con las comunidades los procedimientos y el significado social de la fotografía, es central para que éstas puedan apropiarse de dicha herramienta y la utilicen a su favor para disputar sentidos y proyectarse públicamente. Los talleres de fotografía estenopeica con los estudiantes de las escuelas públicas de Maré y el uso de las redes sociales por fotógrafos ambulantes son casos potentes en este sentido, ya que operan como herramientas políticas para la desestigmatización del territorio y amplifican las voces de los sujetos que lo habitan y construyen diariamente.

    Además, la fotografía permite retratar (no reflejar), desde los intereses del presente, el patrimonio intangible, generalmente subvalorado y sub-representando, de los colectivos sociales de las periferias; ofrece un punto de vista, una mirada propia basada en criterios estéticos, ideológicos, sociales y culturales que invita a otros sectores, pero también a las nuevas generaciones, a conversar sobre otras realidades y futuros posibles.

    Para terminar, quiero volver sobre la idea central del texto, que propone pensar a la ciudadanía como un espacio común en donde todos se sienten convocados a discutir y elaborar, cada uno desde su lugar, proyectos comunes. Como subrayan los autores, la Historia Pública tiene mucho que aportar en este sentido, brindando herramientas a las comunidades para la producción y transmisión de sus saberes, y para garantizar el derecho de todas las personas a habitar dignamente, transformar y disfrutar la ciudad.

    ——————
    [1] Conferencia pronunciada por Calvino en inglés, el 29 de marzo de 1983, para los estudiantes de la Graduate Writing Division de la Columbia University de Nueva York. Incluida como “Nota premilitar” a Las ciudades invisibles.
    [2] Prats, Llorenç (1997). “El patrimonio como construcción social”, en Antropología y patrimonio. Barcelona: Ariel.
    [3] Huffschmid, Anne (2012). “Los riesgos de la memoria. Lugares y conflictos de memoria en el espacio público” en Huffschimd, Anne y Durán, Valeria (eds.) Topografías conflictivas. Memorias, espacios y ciudades en disputa. Buenos Aires: Nueva Trilce.
    [4] Jelin, Elizabeth (2002). Los trabajos de la memoria. Madrid, Siglo XXI.

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